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sexta-feira, 23 de maio de 2008

Quando o sonho da moradia racha...


Toda manhã, Helena de Jesus acompanha com ansiedade a evolução da rachadura na parede da sala de seu apartamento, no condomínio Village Laranjeiras, no município de São Gonçalo. Em novembro de 2006, a doméstica deixou a casa de um cômodo em São José do Ribamar, interior do Maranhão, e mudou com o marido e dois filhos para o Rio, atraída pelas promessas da cidade grande.
- À noite, quando o silêncio é maior, ouvimos as paredes partindo e, no dia seguinte, as rachaduras surgem cada vez maiores - conta Helena, com uma angústia indisfarçável.
O empreendimento foi lançado há apenas nove meses, mas as rachaduras já se alastram por todos os 184 apartamentos. De acordo com os mutuários, a construtora Modelo, responsável pela obra, já realizou três pequenos reparos, mas as rachaduras voltam sempre com mais intensidade. O argumento apresentado pela empresa aos moradores, por meio de correio eletrônico, é que trata-se de um "problema natural, de assentamento de terreno".
Assim que chegou do Maranhão, a sorte pareceu ter aberto os braços para Helena: começou a lavar roupa para fora, encontrou vaga para os filhos em uma escola pública e o marido foi contratado como operário da obra de um edifício residencial de classe média. Com a renda, a família conseguiu entrar em um financiamento para a aquisição da casa própria, com duração de 15 anos, no conjunto habitacional de 23 blocos construído com recursos do Programa de Arrendamento Residencial.
Apesar do sacrifício para economizar R$ 240 por mês, a maranhense estava satisfeita com a nova vida, que prometia ser ainda melhor com a chegada de investimentos na região, atraídos pelo Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, da Petrobras, em construção na vizinha Itaboraí. Mas, dois meses depois de mudar-se para o Village Laranjeiras, o sonho da casa própria se converteu em pesadelo: começaram a aparecer rachaduras profundas na parte externa dos blocos e nos cômodos do apartamento de dois quartos.
Consultor técnico do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura do Rio de Janeiro (Crea-RJ), Canagé Vilhena diz que o problema das construções populares de má qualidade, verificado em São Gonçalo, é comum em outras cidades. Segundo ele, na ânsia de investir os recursos do Programa de Arrendamento Residencial (PAR), algumas construtoras preferem priorizar a quantidade à qualidade, e, por isso, estão deixado de seguir as normas básicas de engenharia e arquitetura.
- Prédio novo com rachaduras é inaceitável - disse. - Os moradores devem formar uma associação e procurar imediatamente o Crea e o Ministério Público para apurar a responsabilidade civil e criminal. É preciso garantir a integridade física e moral dessas pessoas, que se sacrificam tanto para conseguir realizar o sonho da casa própria.
De acordo com a Prefeitura de São Gonçalo, somente no município sete novos conjuntos habitacionais acabam de ser lançados em parceria com o Ministério das Cidades, para famílias que ganham entre R$ 800 e R$ 1.800.
- A prefeitura faz o que pode, mas o déficit imobiliário no município é crônico e vem de longe - revela o secretário de Habitação de São Gonçalo, Fernando Medeiros.
Ele conta que a crise da habitação popular começou com a construção da Ponte Rio-Niterói, nos anos 70. Contratados para trabalhar na obra, centenas de operários mudaram para a cidade e instalaram-se com as famílias em terrenos baldios. A onda migratória levou à edificação no município da primeira vila operária do país, a Vila Laje. Em seguida, a construção da rodovia BR-101 atraiu mais trabalhadores para morar no local.
Com a terceira maior população do Estado (900 mil habitantes, aproximadamente), São Gonçalo enfrenta sérios problemas de ocupação irregular do solo. Hoje, existem 3 mil barracos construídos a menos de 15 metros da linha férrea que será utilizada para o escoamento da produção do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj).
- Esperamos que o Comperj não seja mais um presente de grego para o município, como foi a Ponte Rio-Niterói e a BR-101 - desabafa Medeiros. - Rogamos que os trabalhadores que vierem trabalhar no Comperj não tragam suas famílias.
Com o intuito de amenizar a crise habitacional antes da finalização da obra do Comperj, prevista para 2012, a prefeita da cidade, Aparecida Panisset, sancionou uma lei para regularizar imóveis ocupados por famílias há mais de cinco anos. Outra alternativa em análise é a implantação de um projeto de hospedagem voluntária.
- O Comperj e as empresas que vão se instalar nos arredores vão precisar de pelo menos 40 mil trabalhadores, mas somente 10 mil serão empregados depois da conclusão das obras - calcula Fernando Medeiros. - A hospedagem em casas de família seria uma opção razoável de moradia temporária.
O anúncio de liberação recorde de recursos para habitação pelo governo federal acelerou desde o ano passado o movimento das escavadeiras no município. Desde o início do ano, foram construídos conjuntos habitacionais nos bairros de Santa Luzia, Columbandê, Jaboticabal, Tumbergia, Girassóis e Laranjal.
Para comercializar as unidades, foram realizadas feiras de financiamento voltadas para a população de baixa renda. Apesar do déficit no município, 269 apartamentos não foram vendidos. De acordo com a Secretaria de Habitação, as unidades não foram ocupadas porque muitos candidatos foram reprovados na avaliação de crédito. Márcio Leandro, morador do conjunto habitacional do Laranjal, discorda.
- Se em poucos meses o prédio já está rachando, imagine daqui a 15 anos, quando terminarmos de pagar? - diz. - A gente se sacrifica para pagar a prestação e, quando recebe o imóvel, ele tem risco de desabar. Eu só não saio daqui com a minha família, porque não quero perder o dinheiro que investi nem tenho para onde ir.
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